Primeiramente e, como cantou Roberto Ribeiro em Brasil: berço dos imigrantes, devo dizer que é tempo de carnaval. Tempo que se move – salve João Nogueira – pelo poder da criação. Tempo rico em encontros e parcerias. Tempo no qual os compositores dos blocos que desfilam em forma de cortejo, com um conjunto percussivo e com sambas autorais feitos especificamente para a ocasião, começam a ficar agitados. Há nos blocos do carnaval de rua um campo de criação da qual participam, numa fertilização cultural interessante, músicos tanto profissionais quanto amadores; compositores com trânsito no mercado fonográfico e muitos que aprenderam o ofício na pressão da folia e que, nem sempre, se aventuram a ingressar em domínios mais profissionais mantendo o processo criativo na esfera da sazonalidade. Tampouco se identificam como sambistas – categoria importante no universo das escolas de samba discutida por Maria Laura Cavalcanti.
Os compositores dos blocos produzem suas músicas premidos pelo tempo que corre de forma inexorável e a dilatação, por parte dos responsáveis pelas agremiações, dos prazos para marcar as escolhas dos sambas que serão cantados durante o cortejo. Não é incomum, escolher a obra num dia e desfilar dois dias depois. É tempo suficiente para imprimir as letras que serão distribuídas entre os foliões, que tomam, então, conhecimento da melodia e do tema focado. Há neste momento um sentido de surpresa e descoberta. Se observa também uma recusa à desmobilização, abrindo a possibilidade de contar outra história, que inclui a informalidade da brincadeira de rua, do riso, da ironia, da crítica social e de costumes, elementos presentes nos sambas que animam os cortejos.
Os compositores que militam nas escolas de samba, se movimentam num universo cujos contornos estão demarcados pelo enredo e detalhados na “sinopse do enredo” elaborada pelo carnavalesco da escola e apresentada, de maneira pedagógica, em diversos encontros semanais, como esclarece Maria Laura Cavalcanti em Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile.
O enredo é aquele elemento por meio do qual a forma estética padronizada do desfile se abre ao contexto histórico e cultural, pois a renovação anual de seu tema assegura-lhe a atualidade e a diversidade. Orientando o espetáculo, os enredos promovem a cada ano imensas conversas urbanas sobre os mais diferentes assuntos. Assim, garantem a continuidade e a renovação do desfile, tornando-o um referencial para a constante construção, reiteração e alteração de identidades (carioca, brasileiro, salgueirense, mangueirense, carnavalesco, anticarnavalesco, etc.) […] esse ritual, ao mesmo tempo padronizado e flexível, tem sua própria história, e é preciso compreendê-lo em sua relação com a vida da cidade. (CAVALCANTI, 2006: 82)
A apresentação do enredo aos compositores constitui, diz a autora, um momento crítico no ciclo dos desfiles. O detalhamento e a explicitação daquilo que deve ou não entrar no samba estabelece uma espécie de coautoria entre carnavalesco e compositores. Na medida em que “Um samba-enredo elabora ideias e palavras dispostas por outrem, retirando da prática do ‘fazer poesia’ um dos seus prazeres”, é comum que os compositores não se sintam muito à vontade com esse tipo de cerceamento. (CAVALCANTI, 2006: 118)
Diferentemente dos compositores acima mencionados, geralmente reconhecidos a partir de sua identidade como sambistas[i], os compositores dos blocos de rua trabalham num universo de menor controle da sua produção, o que permite maior liberdade para tratar de temas da agenda política e de costumes sem o cerceamento acima referido. No caso que nos interessa pensar, os rituais e as escolhas temáticas assumem formas diferentes. Por regra geral se observa a produção de crônicas bem humoradas, críticas ácidas, e releituras irreverentes da história recente no Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo, num processo dialógico com as manchetes de jornal.
As narrativas produzidas no samba, elaborados muitas vezes por parcerias construídas em função da disponibilidade de tempo, tem maior autonomia e espontaneidade. Feitos “no calor dos acontecimentos” têm, geralmente, o registro da urgência. Essa peculiaridade é bastante acentuada em algumas agremiações. No bloco carnavalesco Imprensa que eu Gamo, criado por jornalistas que participavam da Caminhada pela Paz organizada em 1995 pelo Movimento Reage Rio e por Betinho, o Herbert de Souza, irmão de Henfil, não foram poucas as vezes que o samba vencedor incorporou, na letra, as manchetes do jornal do dia da disputa. Muitas vezes era a frase que os compositores esperavam para, na sua linguagem, “arredondar” o samba que estava quase pronto. Aqui também, portanto, e parafraseando Cavalcanti “pode-se perder ou ganhar um Carnaval ai” (2006:104). A composição é, muitas vezes, finalizada poucas horas antes da apresentação e o elemento surpresa joga importante papel. Pode se perder ou ganhar ai também na apresentação. Não só, é claro, pela presença de um interprete afinado, mas pelo ritual que carnavaliza à própria defesa do samba em disputa. E, se carnavalização se refere à ambivalência, ao inacabamento, à subversão e ruptura em relação ao mundo oficial, o ritual quase sagrado do concurso e da disputa é profanado pelas fantasias que descrevem o samba defendido. Há também aqui a urgência que afirma que o carnaval, finalmente, chegou, em tempos sombrios, para alegrar o coração.
Bibliografia
CAVALCANTI, Maria Laura. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
SAPIA, Jorge e ESTEVÃO, Andréa. “Narradores e narrativas do carnaval de rua carioca”. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, V.11 N.2. Novembro. 2014
- A foto é de Vergilius Fernandes
[i] Ver a este respeito Maria Laura Viveiro de Castro Cavalcanti. O Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. Cf. particularmente o capítulo 3.