Saudades dos meus botequins.


De botequins e de saudades

Luís Pimentel

     Há quem diga que o bar é o segundo lar; há quem comprove que é o primeiro. Botequim é estado de espírito. E os melhores se instalam no espírito da gente desde as mais longínquas encadernações: meus cotovelos leem balcões de vidas passadas, pois já enterrei inúmeras vezes o coração em curvas e esquinas cheias de mesas na calçada. Identifico o sabor dos versos de Macarrão, Jorgito e Mariozinho, pois já pedi “mais uma dose para não cair”, enquanto a saudade dançava na sopa da ervilha.

     O bom pé sujo tem alma limpa. Lembro-me de um que, como no samba que compus com Paulinho do Cavaco, “Saudades dos meus botequins”, tinha “um gato dormindo em cima da janela e no alto São Jorge matando um dragão”. Era um singelo e legítimo boteco no Catumbi, em tempos em que enfrentava os dias tentando a vida no Rio, espremido em quartinho alugado na Heitor Carrilho. Parava no fim do dia, pruma gelada e para apreciar a elegância de uma frequentadora histórica: sempre sozinha, cigarro no bico e garrafas em cima da mesa. Devia ter uns cinquenta anos, era bonita e silenciosa. Lá pras tantas pagava a conta, fechava a bolsa, arrumava os cabelos com as mãos e sumia pelas ruelas do bairro. Ninguém sabia ao certo onde morava.
     Tempos depois, no meu inventário de ausências, passei por ali, curioso. O boteco se acabara, a cliente misteriosa provavelmente também. Hoje fiz um brinde sozinho, em homenagem a ela e aos cenários e personagens que a cidade vai vertiginosamente enterrando. E já que não pediram, conto outra do inventário de ausências:

     Diz um verso genial de Aldir Blanc (pleonasmo!), musicado por João Bosco: “Pistola em butequim não dá bom carma / Melhor trocar o berro pela Brahma”. Pois o sujeito chegou no Buteco do Bira, na Correa Vasquez (Estácio) e estacionou ruidosamente o trezoitão na mesa, pediu uma batida da casa e grunhiu:
     “Vou matar!”
     Covarde desde menino, fui logo pedindo a conta pra bater em retirada, quando o Bira me acalmou:
     “Relaxa. Ele diz isso toda vez que briga com o namorado.” 
     Assustei-me, pois naqueles tempos não era tão comum assim:
     “Namorado?!”
     “Da mulher dele”, disse Bira.

     Onde anda o Bira? Provavelmente findou-se juntamente com o bar. Sim, porque botequim também serve saudades. E nunca diga dessa água não beberei, pois a qualquer momento você pode precisar tomar um Engov.

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Sobre jorgesapia

Abduzido pela folia foi tentar entender esse fenômeno no bacharelado de Ciências Sociais da UFF e no Mestrado em Sociologia do IUPERJ. Com sua identidade secreta dá aulas de sociologia, cultura brasileira e Teoria Social do Carnaval em diversas instituições. Entre um semestre e outro, despede-se de seus alunos com um Meu Bem, Volto Já, saudação que acabou dando nome ao bloco que fundou no Leme. Durante o reinado de Momo compõe sambas para diversos blocos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
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