HOSANA NAS ALTURAS!


HOSANA NAS ALTURAS!

Jorgito Sapia

Passava da meia noite, sono instalado, pausei a leitura para programar o Sleep Timer da TV que estava ligada no Spotify. Mesmo cochilando consegui identificar os primeiros acordes de Take Five, composição de Paul Desmond, apresentada pelo The Dave Brubeck Quartet no álbum Time Out de 1959. Arriscava dormir antes de ouvir o solo de bateria de Joe Morello, senti que o livro que estava lendo me escapava das mãos quando ouvi, nitidamente, a entrada de uma mensagem no zap. Deixei rolar, mas, na sequência, entraram outras cinco. A curiosidade foi mais forte que o sono.

Estiquei a mão, peguei os óculos, digitei a clave e entrei.

Era Marcinha, amiga das antigas com quem não falava desde uma viagem complicada que a gente fez faz muito tempo. Marcinha nunca pecou por falta de assunto, gostava de falar e muito. Agora foi telegráfica, estava claro que seguia as regras das redes. Depois da leitura da terceira mensagem a preocupação se desfez. Começou cumprimentando e logo foi para os finalmente.

-Salve, salve, boa noite.

-Tudo bem?

-Quanto tempo hein?

-Ganhei uma passagem para Buenos Aires.

-Embarco hoje cedo, a contragosto!

-Preciso dicas. Beijos!

Li as mensagens, perdi o sono, mas não perdi o solo de Joe Morello!

Lá estava eu, de madrugada, dando tratos à bola sobre as dicas que poderia elencar. Nada fácil. Como escolher alguns lugares de um universo imenso?  Lembrei do poeta Luís García Montero quem, ao evocar Granada, sua cidade natal, diz que “cada pessoa tem uma cidade que é uma paisagem urbanizada de seus sentimentos.” Que sentimentos viriam à tona nessa empreitada?

Lembrei que no inverno passado, numa das minhas idas a Buenos Aires, me encontrei com Mario, amigo de longa data, na London City, bar notável da cidade inaugurado em 1954. Conta a lenda que nas mesas do café, localizado na Av. de Mayo esquina Peru, Cortázar teria escrito a novela Los Premios, publicada em 1960.

Fui de metrô, Linha A – inaugurada em 1913. Confesso que bateu a saudade dos vagões La Brugeoise, de origem belga, recentemente substituídos por composições chinesas. Charme zero!

Saltei na estação Peru. Subi a escada mecânica e assim que cheguei no nível da rua recebi a lufada de ar gelado. Foi o tempo de arrumar o cachecol e avistar meu amigo sentado confortavelmente numa das mesas da calçada. Portenho gosta de sentar-se ao ar livre em qualquer época do ano. Eu teria preferido o interior do bar, numa mesa não muito próxima da estátua do Júlio Cortázar que atrai tantos turistas para fotos quanto a do velho Drumond sentado placidamente no calçadão de Copacabana. Tai a dica, quer escolher o lugar? Chega cedo!

Depois do abraço e saudações de praxe o amigo, talvez procurando um mote para iniciar nossa conversa ou talvez já acusando os desvarios da idade, informou que estávamos a 100 metros, direção leste, da praça mais importante da cidade: a Plaza de Mayo. assenti com um leve movimento da cabeça e emendei, – querido amigo, faltou informar que estamos a 150 metros da Pirâmide de maio, construída em 1811 e ressignificada, por Madres e Abuelas de Plaza de Mayo desde o 30 de abril de 1977.

Acessando meu GPS mental informei que 50 metros mais adiante se encontra a Casa Rosada e atrás da casa, descendo por Balcarce, está o museu do Bicentenário, inaugurado em 2011.  Não dá para perder o mural “Ejercicio plástico”, do muralista mexicano David Alfaro Siqueiros, feito no seu exílio portenho no sítio do empresário Natalio Botana.

O amigo que me olhava com um sorriso no rosto falou

– Esqueço que você também é minhoca.

– Pois é! Rimos como vontade!

Essa grata lembrança me fez concluir que o café é o lugar ideal para começar um mini tour pela cidade. Pronto! Tem algumas novidades e acho que Marcinha vai gostar.

Primeira informação relevante é que das esquinas da praça é possível acessar 4 das 6 linhas do metrô da cidade. Linha A sentido oeste. Linhas B e D, norte (sentido Palermo) e E sudoeste.

Está última, originalmente Plaza de los Virreyes- Bolivar, ganhou, recentemente uma extensão até a estação ferroviária do Retiro, central que atende as linhas em direção à zona norte da cidade, incluído aí a linha que vai para o Delta do Tigre. A extensão tem uma estação no ex edifício do correio central, hoje transformado no Centro Cultural Kirshner. Centro cultural que mudará seu nome na gestão Milei. Claro né?

Não sei por que pensei que essas informações sobre o metrô portenho iriam ser do agrado de Marcinha.

Lembrei que Mario falou, com saudade, do tempo que tomávamos café no Tortoni e arriscávamos umas partidas na sinuca. O Tortoni, outro bar notável, fica a 200 metros do lugar em que nos encontrávamos. Ele foi categórico:

-Não frequento mais. Muito turista, mais da metade da tua nova terra.

-Fato, a maioria paulista, conclui.

Mesmo assim, vale recomendar e avisar para dar uma esticada no museu do tango que fica ao lado. Aliás, particularmente adoro percorrer os 2 km da Avenida de Mayo que separam a Plaza de Mayo do Congresso Nacional.

Deu para sacar que o sono foi embora e que estava, na madrugada, puxando pela memória para definir um roteiro que fosse do agrado de Marcinha. Queria, pelo menos, garantir um dia de descobertas.

Comecei meu e-mail de resposta com querida Marcinha, saiba a senhora, que meu roteiro recomenda um passeio pela Avenida de Mayo, inaugurada em julho de 1894, portanto, uma década antes do início das obras que, no Rio de Janeiro, o prefeito Pereira Passos, a golpes de picareta, levou adiante para construir a avenida Central, hoje, Rio Branco. Uma rápida pesquisa pelas atas do Senado Brasileiro vai mostrar a preocupação dos Senadores com a iniciativa argentina. Preocupação, claro, orientada pelas oportunidades de negócios que se perderiam se continuassem a apostar no atraso – segundo a leitura da época- e não no projeto de modernização que deveria atrair inúmeros investimentos estrangeiros. A toque de caixa a Paris dos trópicos deveria ter condições de competir com a Paris del Plata.  Oui, oui!

Essa orientação perdurou nos trópicos até o momento em que Caetano informa, em Baby, que os tempos tinham mudado. Menos Paris, mais New York “Baby, você precisa aprender inglês”.

Marcinha querida, vou tentar evitar desvarios. Vamos ao que interessa. Logo ali, no primeiro quarteirão se encontram o edifício do Jornal La Prensa e a passagem Roverano, no número 560 da Av. Um pouco mais adiante a passagem Urquiza Anchorena e, um pouco mais à frente, o Palácio Barolo. Você sabe que Walter Benjamim teria gostado dessa tríade.

A arquitetura do palácio Barolo recebeu a inspiração da Divina Comédia de Dante, seus 22 andares são uma referência às 22 estrofes presentes no livro. Recomendo vivamente que aproveite a divina vista que se tem da cobertura do palácio. Com sorte e boa imaginação poderá perceber o contorno do edifício gêmeo, o Palácio Salvo, construído pelo mesmo arquiteto em Montevideu.

Curtida a vista, volte, meu bem, ao ponto de partida.  Passe pelo Hotel Castelar, ali, no número 1152 da avenida. Obra do mesmo arquiteto do Barolo, o italiano Mario Palanti. O hotel hospedou durante um bom tempo o poeta espanhol Federico Garcia Lorca, outro ilustre granadino. David Alfaro Siqueiros, muralista mexicano, passou por lá na década de 1930.

No retorno, você vai atravessar os 140 metros de largura da avenida 9 de Júlio. Dá um respirada no meio e olha para a esquerda, voilà o Obelisco! Olha também para a direita e espia o enorme prédio no meio da avenida, sede dos ministérios da Saúde e Desenvolvimento Social. |Lembra que está olhando para a direita e me conta, por favor, se a imagem de Evita Peron continua tomando conta do prédio ou se Milei já a fez desaparecer.

Quando chegar na esquina da London City, vire à esquerda e caminhe pela rua Florida. No número 165 aparece a Galeria Güemes, outra passagem para pedestres de 100 metros de cumprimento. Não duvide um segundo sequer! Suba até o mirante localizado no 14 andar do prédio, encare o último andar por uma íngreme escada e terá, ao seu dispor, uma vista panorâmica de 360º da cidade. Haverá de concordar comigo que do alto tudo fica mais bonito!

Aproveitando o embalo, caminha mais 600 metros em direção ao Puerto Madero e visita o Centro Cultural Kirshner, no antigo prédio dos correios. Vá na cobertura por um dos elevadores panorâmicos e aprecie a deslumbrante vista do Rio de la Plata. Se for uma quinta-feira, quando descer, imagino, extasiada, poderá arriscar uns passos -caso Milei não tenha proibido – na bonita milonga que rola no térreo!

Boa viagem!

Enviei esse pequeno roteiro via e-mail na hora que ela, talvez, estivesse embarcando. Com a satisfação do dever cumprido fui dormir o sono dos justos.

Acordei meio ressabiado. Fui reler as mensagens da Marcinha e apareceu uma desagradável sensação quando prestei atenção na quinta mensagem:

-Embarco hoje cedo, a contragosto!

Ao reler “a contragosto” caiu a ficha. Marcinha tem pavor de altura. Mora no térreo, sobe escadas, detesta elevador!  Lembrei que na viagem que fizemos foi uma lenha para entrar no avião. Foi necessária uma dose cavalar de Alprazolan para amenizar a síndrome do Pânico.

Imagino que hoje tenha adotado o mesmo procedimento para embarcar. Quando acordar, depois do desembarque, vai me xingar!

Sobre jorgesapia

Abduzido pela folia foi tentar entender esse fenômeno no bacharelado de Ciências Sociais da UFF e no Mestrado em Sociologia do IUPERJ. Com sua identidade secreta dá aulas de sociologia, cultura brasileira e Teoria Social do Carnaval em diversas instituições. Entre um semestre e outro, despede-se de seus alunos com um Meu Bem, Volto Já, saudação que acabou dando nome ao bloco que fundou no Leme. Durante o reinado de Momo compõe sambas para diversos blocos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
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